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quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Entre violas e cartolas, o Brasil que se repete

 

Entre violas e cartolas, o Brasil que se repete,

E não se pense que tudo isto aí é novo.

Enquanto hoje discutimos se brancos podem compor e cantar samba (que Noel Rosa não nos ouça), na década de 20, 30 e 40 o Brasil era sim dividido. Claramente, claramente dividido.

Quem usava cartola era cartola, quem tocava viola que usasse panamá.

"malandro" (que era diferente do “mané”) era quem precisava da picardia para dobrar a lei e viver no seu limite. Fazendo isto, equiparava-se um pouco com quem tinha a lei sempre ao seu lado. O mané era aquele que nem tinha a lei por si (por sobrenome, cor ou posses), nem tinha a esperteza para viver com garbo à margem dela.

Uma sociedade dividida em cartolas, malandros e manés. Naquela época, a estética, a retórica e a geografia eram sinceras. Os três grupos tinham seus nichos próprios. Os encontros eram fortuitos, raros. O malandro e o mané se encontravam no lusco-fusco do final do dia quando um retornava da "labuta" e o outro ia para a "cantoria". Nos bondes, nas estações ou nos bares que se encontravam os brasis. O mané e o cartola também se viam pouco. Os cartolas nunca gostaram de se dar a conhecer. A geografia ajudava, colocando os brasis em distância urbana regulamentar.

malandro e o cartola, estes viviam às turras. Existia o encontro moral mediado pelo samba e o físico mediado pela polícia. Enquanto o primeiro machucava os cartolas, o segundo os malandrosAmbos os encontros passaram para a posteridade, mas acho que o samba atingiu o mundo num grau de contemplação maior do que violência da polícia atinge os brasis não cartolares, até hoje.

Sempre, portanto, se soube que a polícia era dos cartolas. Nunca foi segredo que os juízes também. Apenas que, naquele tempo, os sambas eram mais verdadeiros e as decisões judiciais menos cínicas. Até hoje, se estudam os sambas para conhecer a sociedade e os registros policiais e decisões jurídicas para se evidenciar as diferenciações sociais. A História não se engana e costuma não exigir algo de quem não pode dar.

O terrível dos tempos atuais é que o samba foi deslocado pelos chamados "ritmos comerciais"Perdeu-se o intérprete-mor da sociedade, cujos versos eram quase fotografias dos temposO patrulhamento dos cartolas é tão grande que quando surgem pensadores nestes novos ritmos, a denunciar a sociedade, são imediatamente perseguidos aos gritos de "manipulação ideológica". Como se algo no mundo não fosse ou pudesse não ser. Os cartolas acusam, a bem da verdade, a força do samba. Sabem que um gênio com uma viola faz sentir a realidade. Mesmo para aqueles que padecem de muita realidade, tanta que lhes amortece os sentidos.

Talvez aqui esteja o motivo do atual ataque à cultura, ao carnaval, à História. Todas formas epidérmicas de contar o mundo e os tempos. Todas com meios quase invisíveis de tocar as almas. Os cartolas nunca gostaram de violas ou livros. E isto diz muita coisa. Desde o poema musicado ou o pensamento prensado, todos falam de um mundo que é até um mundo que poderia ser. E nada mais perigoso para a realidade do que o sonho. Nada mais perigoso para uma cartola do que a descrição nua e crua do que ela é.

Também as estéticas se confundem. Ninguém mais usa cartola. Mas os cartolas se certificaram que muitos usassem gravatas. E hoje é difícil discernir as italianas feitas à mão das compradas na banca da praça. As cartolas guardavam uma sinceridade que os cartolas não. As gravatas são mais discretas, fugidias. O uso da gravata é como a invenção das S.A. (sociedades anônimas)não se sabe mais de onde vem o tapa da tal "mão invisível". Alguns manés (até por serem manés) ostentam orgulhosos as gravatas. Até lutam para usá-las. Queriam estar usando, na verdade, as cartolasMas isto jamais conseguirão. As violas se aprendem a tocar, as cartolas não. E sempre tem a caixinha de fósforo como remédio ao excesso de realidade e alguma falta de talento.

Bom que hoje temos juízes menos capazes do que outrora. Diminuiu a vontade de se parecer legal. A empolação das citações latinas ou o formalismo do "the rule of law" jogavam um papel importante. Do hermetismo. Inaudita altera partis, os juízes falavam para si. Havia, contudo, que colocar uma frase afirmativa que contivesse o que os cartolas queriam ouvir. "Pelo exposto, (que ninguém mais precisa entender) torno sem efeito decisão anterior contra o nobre senador". É tudo o que realmente se importa dizer. Se o é por um garantismo oportunista ou por um estrabismo político, pouco interessa.

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